domingo, 4 de janeiro de 2009

Narciso

O relógio do quarto marcava meio-dia, o homem da cama ao lado havia acordado e tomava um prato de sopa, auxiliado pela enfermeira.
- Bom dia, seu Pedro! Intão foi dá uma volta hoje?
Pouca coisa havia sobrado àquele homem, a perna que não tinha sido mutilada, era devorada dia após dia pelo tétano. Um de seus braços terminava em uma atadura logo abaixo do cotovelo, e um rosto desfigurado por alguma explosão completava a imagem lastimável do pequeno homenzinho que sorria em seu leito. Poucas pessoas haviam perdido mais do que ele naquela guerra, mesmo assim, nada o fazia esconder aquele sorriso amarelo.
Como ele podia sorrir nessa situação? Como podia transmitir tanta força aos outros sem ter aparentemente nenhuma?
Quando conheceu narciso, Alice perguntou a seu tio como podia ser isso.
- A Esperança é difícil de tirar das pessoas, Alice.
Ela não perguntou mais nada, mesmo assim, não deixo de imaginar como tal homem podia ter esperança. Ninguém de sua família havia sobrado, sua casa era um monte de ruínas, estava condenado a mendigar para sobreviver, e como pois sorria esse homem?
- Ah Narciso, como precisava respirar um pouco, sentir um cheiro diferente... e por falar nisso, que cheiro bom dessa sopa hein!
A voz do pai despertou Alice para a realidade, ela tentava acompanhar a conversa.
- É seu Pedro, logo oçê também vai tá metendo o beiço nessa sopa aqui, e sabe o que mais, o governo vai mi da um par de pernas!
- Pernas?
- É, pernas micânicas! Ai só vo precisa de um par de muletas!
- Mas como vai segurar as muletas?
- Ah, isso nois vê dipois, que importa é que eu vô ter pernas otra veiz, a idéia di dependê de rodas pro resto da vida já tava me incomodando.
Alice sorriu, a maneira como aquele homenzinho dava valor às coisas lhe desafiava a compreensão.
- E seu istômago?
- Já esta quase bom, mais uma semana e poderei tomar sopa com você.
- Squéci a sopa, Pedro. Daqui um tempo nois vamo come é churrasco.
- É... churrasco!
Alice olhou mais uma vez para o sorriso amável do pai, talvez daí ele tirasse forças para suportar tudo. De um pequeno toco de homem, que possuía um grande sorriso.
- Senhores, o tempo de visita acabou.
Alice sentiu seu estômago gelar. Teria de ir outra vez, ir e deixa-lo ali... grudou-se ao pai novamente e tentou fugir dali, esquecer tudo e voltar aos dias bons.
Agora estava de volta à pequena sala, voando nos braços do pai, seu coração batia apressado, mas não tinha medo de cair, podia voar o quanto quisesse, sempre haveria os braços fortes lhe segurando.
- Vamos, Alice. Temos que deixar seu pai descansar agora.
Ela se deixou retirar, mas antes de ir, correu ao leito de Narciso.
- Por favor, cuide do papai.
- Fique tranqüila, mocinha. Deus ta cuidando dele, Ele cuida bem de todo mundo, e seu pai é um homem muito forte.
Sim, ela sabia, só queria ser tão forte quanto ele...
Deixou-se levar pelo corredor do hospital, aos poucos voltava a lembrança da sala onde voava, sem precisar sentir medo.
A paisagem que passava pela janela já não parecia ter sentido, tudo se misturava em uma grande mancha cinzenta. Alice sentiu ter deixado parte de si mesma no hospital, o vazio já tão grande, agora aumentava. Não sabia mais o que pensar, o que ouvir, nada mais fazia sentido, os olhos ainda molhados de lágrimas se fechavam lentamente, na tentativa de fugir de qualquer coisa.

Um comentário:

Camilíssima Furtado disse...

Impressionante como um texto assim é capaz de mudar a forma como encaramos as coisas. Hoje acordei preocupada com um problema de difícil solução... depois de ler seu texto, já pude refletir sobre a efemeridade das coisas, da própria vida. Nunca devemos deixar que os problemas sejam maiores que a nossa força de vontade. Que bom reler seus textos! Ótimo 2009 para ti! Beijos, Camila.