O vento entrava pela pequena fresta de vidro aberto e enchia o interior do carro, trazendo o leve cheiro de pólvora, que, mesmo depois de tanto tempo, insistia em permanecer no ar como uma maldição. Para que nunca ninguém esqueça... Alice olhava as ruínas que passavam rapidamente, em alguns pontos, as casas já começavam a se reerguer, homens e mulheres trabalhavam sob o sol árduo para que paredes subissem, trazendo de volta o que fora destruído. A cidade se recompunha, mas nunca seria como antes, agora as ruas eram povoadas de soldados a quem deviam respeitar e obedecer. Alice evitava-os sempre que possível, não gostava da idéia de respeitar aqueles assassinos, mas também não queria que nada de ruim acontecesse...
Diego também olhava pela janela, mas com os olhos distantes e a expressão pensativa, parecia enxergar muito além do que via. Ele não era mais o mesmo, o Diego alegre e barulhento, que chorava por qualquer motivo havia desaparecido para dar lugar a um ser humano sombrio e distante, nunca mais vira em seu rosto um sorriso ou sequer uma lágrima, nem mesmo quando Tom morreu ela vira algum sinal de mudança em sua expressão. Agora ela dificilmente ouvia a voz do irmão, diferente das longas conversas de antigamente, agora ele só falava o necessário do dia a dia, passando quase todo o tempo a fitar algum ponto qualquer, com a mesma expressão distante .
Quando era pequena, Alice havia ralado o joelho e chorava desesperadamente nos braços de sua mãe, seu tio Onésio deu-lhe uns tapinhas e disse:
- Não chore demais Alice, senão suas lágrimas vão secar.
Agora pensava se não seria isso que ocorrera com o irmão. Será que ele chorou demais e riu demais? Mesmo assim, não conseguia encontrar uma forma de secar o riso.
O carro parou em uma avenida, já próximo ao hospital; o trânsito aguardava pacientemente enquanto um grupo de manifestantes era massacrado pelas forças de ocupação.
- Eles são loucos de fazer isso...
Alice percebeu um leve tom de indiferença em sua voz, o suficiente para despertar o irmão de seu silencio habitual.
- Não despreze os loucos, Alice. Eles têm mais coragem que nós e podem fazer coisas muito maiores.
Pensou em responder alguma coisa, mas Diego já havia retornado aos seus pensamentos. O carro voltou a se movimentar e Alice pôde ver os manifestantes algemados junto à parede, exibindo os hematomas recém adquiridos, agora os militares estavam algemando a equipe de reportagem que veio para cobrir o evento. Será que eles podem fazer coisas grandes mesmo?- Pensou – agora, algemados, vai ficar mais difícil...
A cena ficou para trás e ninguém mais falou até o hospital. Tio Onésio, que costumava tagarelar por horas a fio, ainda não dissera nenhuma palavra. Apesar de sentir-se bem com o silencio, Alice estava muito ansiosa para ficar quieta. Começou a estalar os dedos para aliviar a tensão e logo tio Onésio juntou-se à melodia e até Diego, depois de resistir um pouco, entregou-se à sinfonia de estalos. Assim foram estalando os dedos até o hospital.
No corredor silencioso do hospital, Alice podia ouvir seu próprio coração batendo descompassadamente. Havia se preparado para aquela ocasião, mas agora, não podia deixar de sentir medo. Sempre que via o pai em seu sofrimento silencioso, tinha medo do que viria pela frente.
A porta abriu-se num pequeno escândalo de rangidos, revelando um homem forte e robusto, agora completamente inútil em seu leito. Ele olhou a porta e fez-se num grande sorriso.
- Não é que vocês chegaram então... quem vem primeiro me dar um abraço?
Ao ver o grande sorriso do pai, Alice não pode deixar de sorrir também, correu para junto do leito e abandonou-se sob o braço que restara, esquecendo da vida e do mundo.
Diego abraçou o pai discretamente, deixando escapar uma expressão alegre, mas sem sorrir, e em seguida, foi a vez de tio Onésio, que teve de ser removido para não esmagar o irmão em seus braços de urso. Todos esforçavam-se por sorrir quando estavam naquele quarto, mas tio Onésio agora chorava como uma criança. Ele havia retido as dores ao máximo, mas agora elas escapavam contra sua vontade, através de uma explosão de lágrimas.
Enquanto tio Onésio se recompunha, a enfermeira tratou de trazer uma cadeira de rodas, com a ajuda Diego, ela pôs o homem do leito, na cadeira, ajeitando o soro no suporte. Exibindo o mesmo sorriso, ele assumiu voz de comando para seu primeiro passeio depois de vários meses.
- E então, o que estamos esperando? Vamos embora!
Nesse momento Alice percebeu nada fora grave o suficiente para afetar seu Pai, mesmo em uma cadeira de rodas ele ainda lhe transferia forças, tiradas sabe-se lá de onde, motivando-a a nunca desistir.
O parque estava vazio naquela manhã, apenas algumas senhoras passeavam com seus cachorros pela única pista que sobrara. As ruínas da estufa sobressaiam imponentes, dando a entender que aquele já foi um belo lugar. Alice fitou os olhos de seu pai, perdidos entre as ruínas, com a mesma expressão distante que já vira nos olhos de Diego. Podia enxergar neles um misto de raiva e melancolia, raiva pelo estado da cidade que ele defendeu, mesmo com a própria vida, e a melancolia pela falta de esperança de que tudo volte a ser o que era.
- E a escola, Alice?
Ela acordou subitamente de seus pensamentos, apressando-se a responder.
- Ainda está em ruínas, os militares não permitiram que fosse reconstruída.
-Malditos...primeiro destroem nossa casa, agora querem destruir nossos direitos.
Sem entender porque, Alice contou o ocorrido daquela manhã, e as palavras de Diego.
- Sem dúvida eles vão acabar fazendo algo grande, mas isso lhes custará a vida.
Os dois estavam sentados em um banco de frente para o lago, tio Onésio estava deitado na grama ali próximo e Diego, sentado à margem, atirava pedras na água.
- Diego quase não tem falado ultimamente...
- Não julgue, ele tem seus motivos.
Ele parou de súbito, como se fosse terminar a frase.
- Sabe o que o Doutor me disse hoje?
- O que?
- Adivinha...
Alice estava a perder a paciência, ele sempre fazia isso nessas horas, e ela sempre se excedia em sua ansiedade.
- Vamos, diga logo, papai!
- Daqui duas semanas eu recebo alta... E sua mãe também!
Alice experimentou algo que a muito não sentia – a esperança voltou a visitar-lhe, avivando cada célula do seu corpo, mais uma vez abandonou-se no braço forte de sue pai e esqueceu de tudo ao redor.
- Diego! Papai e mamãe recebem alta em duas semanas!!
-Que bom!
Para a surpresa de Alice, surgiu nos lábios do irmão o principio de um sorriso. Será que ele está voltando? Ao perceber o olhar dela, Diego voltou a fechar o rosto e assim permaneceu.
- Já é hora de voltarmos.
Após um sorriso satisfeito, tio Onésio voltou à posição séria, ele também não estava normal. No caminho de volta lembrou-se de perguntar ao pai, enquanto Onésio e Diego colocavam a cadeira no porta-malas.
- Porque tio Onésio está tão triste hoje?
- Um grande amigo de seu tio, que estava desaparecido, foi encontrado ontem. Onésio ainda tinha esperanças de que o achassem vivo.
Ao ver a expressão de seu pai, Alice participou do sofrimento de Onésio. Porque as pessoas boas têm que sofrer?. Lembrou-se das palavras de seu professor, poucos dias antes dos bombardeios: Tudo atualmente é feito em prol do dinheiro, inclusive essa guerra.
Foi por isso que Tom morreu – pensou – E também o amigo de tio Onésio, assim papai perdeu o braço e está no hospital, para que alguns homens saciassem sua ganância. A maldita guerra...o maldito dinheiro.
Uma lagrima de raiva escorreu pelo seu rosto, ela secou-a com a mão e esforçou-se por sorrir. Queria também fortalecer seu pai, e transmitir-lhe a confiança que ele a pouco lhe dera, mas o máximo que conseguia era sorrir um sorriso falso, escondendo a dor.