quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

364 dias e 12 horas

Época de fuçar papeis antigos e ver de fato o que mudou, reparar nas novas cicatrizes por onde escorre o resto de nossa inocência. Os dias se passaram e algo se fez algo se deixou, e ao somar os pontos tudo que se percebe é que podia ter feito melhor.
O tempo se mostra outra vez invencível, além de nossa compreensão, mas diz também que não quer vencer-nos e nos dá outra chance, então ouvimos a voz de Deus : "Vai meu filho, você consegue!". Temos mais um ano e novos sonhos, e é incrível perceber que apesar de ser tudo igual, da mesma forma é tudo diferente.
E vão-se os dias em fatos, em cores, em gestos, em tudo a nossa volta, as cicatrizes provam que somos reais e vivemos. Por mais que ausências preencham de branco espaços coloridos, o dia pode ser belo com o que resta.
E restam amigos que sempre nos lembram que o próximo será melhor e a estes levo comigo através do tempo.

Um feliz, belo e maravilhoso ano a todos vocês que doam seu tempo a ler isso aqui, obrigado por tudo!
E que seja melhor que o antigo e pior que o próximo!

domingo, 28 de dezembro de 2008

Mais um pouco sobre Alice

O vento entrava pela pequena fresta de vidro aberto e enchia o interior do carro, trazendo o leve cheiro de pólvora, que, mesmo depois de tanto tempo, insistia em permanecer no ar como uma maldição. Para que nunca ninguém esqueça... Alice olhava as ruínas que passavam rapidamente, em alguns pontos, as casas já começavam a se reerguer, homens e mulheres trabalhavam sob o sol árduo para que paredes subissem, trazendo de volta o que fora destruído. A cidade se recompunha, mas nunca seria como antes, agora as ruas eram povoadas de soldados a quem deviam respeitar e obedecer. Alice evitava-os sempre que possível, não gostava da idéia de respeitar aqueles assassinos, mas também não queria que nada de ruim acontecesse...
Diego também olhava pela janela, mas com os olhos distantes e a expressão pensativa, parecia enxergar muito além do que via. Ele não era mais o mesmo, o Diego alegre e barulhento, que chorava por qualquer motivo havia desaparecido para dar lugar a um ser humano sombrio e distante, nunca mais vira em seu rosto um sorriso ou sequer uma lágrima, nem mesmo quando Tom morreu ela vira algum sinal de mudança em sua expressão. Agora ela dificilmente ouvia a voz do irmão, diferente das longas conversas de antigamente, agora ele só falava o necessário do dia a dia, passando quase todo o tempo a fitar algum ponto qualquer, com a mesma expressão distante .
Quando era pequena, Alice havia ralado o joelho e chorava desesperadamente nos braços de sua mãe, seu tio Onésio deu-lhe uns tapinhas e disse:
- Não chore demais Alice, senão suas lágrimas vão secar.
Agora pensava se não seria isso que ocorrera com o irmão. Será que ele chorou demais e riu demais? Mesmo assim, não conseguia encontrar uma forma de secar o riso.
O carro parou em uma avenida, já próximo ao hospital; o trânsito aguardava pacientemente enquanto um grupo de manifestantes era massacrado pelas forças de ocupação.
- Eles são loucos de fazer isso...
Alice percebeu um leve tom de indiferença em sua voz, o suficiente para despertar o irmão de seu silencio habitual.
- Não despreze os loucos, Alice. Eles têm mais coragem que nós e podem fazer coisas muito maiores.
Pensou em responder alguma coisa, mas Diego já havia retornado aos seus pensamentos. O carro voltou a se movimentar e Alice pôde ver os manifestantes algemados junto à parede, exibindo os hematomas recém adquiridos, agora os militares estavam algemando a equipe de reportagem que veio para cobrir o evento. Será que eles podem fazer coisas grandes mesmo?- Pensou – agora, algemados, vai ficar mais difícil...
A cena ficou para trás e ninguém mais falou até o hospital. Tio Onésio, que costumava tagarelar por horas a fio, ainda não dissera nenhuma palavra. Apesar de sentir-se bem com o silencio, Alice estava muito ansiosa para ficar quieta. Começou a estalar os dedos para aliviar a tensão e logo tio Onésio juntou-se à melodia e até Diego, depois de resistir um pouco, entregou-se à sinfonia de estalos. Assim foram estalando os dedos até o hospital.
No corredor silencioso do hospital, Alice podia ouvir seu próprio coração batendo descompassadamente. Havia se preparado para aquela ocasião, mas agora, não podia deixar de sentir medo. Sempre que via o pai em seu sofrimento silencioso, tinha medo do que viria pela frente.
A porta abriu-se num pequeno escândalo de rangidos, revelando um homem forte e robusto, agora completamente inútil em seu leito. Ele olhou a porta e fez-se num grande sorriso.
- Não é que vocês chegaram então... quem vem primeiro me dar um abraço?
Ao ver o grande sorriso do pai, Alice não pode deixar de sorrir também, correu para junto do leito e abandonou-se sob o braço que restara, esquecendo da vida e do mundo.
Diego abraçou o pai discretamente, deixando escapar uma expressão alegre, mas sem sorrir, e em seguida, foi a vez de tio Onésio, que teve de ser removido para não esmagar o irmão em seus braços de urso. Todos esforçavam-se por sorrir quando estavam naquele quarto, mas tio Onésio agora chorava como uma criança. Ele havia retido as dores ao máximo, mas agora elas escapavam contra sua vontade, através de uma explosão de lágrimas.
Enquanto tio Onésio se recompunha, a enfermeira tratou de trazer uma cadeira de rodas, com a ajuda Diego, ela pôs o homem do leito, na cadeira, ajeitando o soro no suporte. Exibindo o mesmo sorriso, ele assumiu voz de comando para seu primeiro passeio depois de vários meses.
- E então, o que estamos esperando? Vamos embora!
Nesse momento Alice percebeu nada fora grave o suficiente para afetar seu Pai, mesmo em uma cadeira de rodas ele ainda lhe transferia forças, tiradas sabe-se lá de onde, motivando-a a nunca desistir.
O parque estava vazio naquela manhã, apenas algumas senhoras passeavam com seus cachorros pela única pista que sobrara. As ruínas da estufa sobressaiam imponentes, dando a entender que aquele já foi um belo lugar. Alice fitou os olhos de seu pai, perdidos entre as ruínas, com a mesma expressão distante que já vira nos olhos de Diego. Podia enxergar neles um misto de raiva e melancolia, raiva pelo estado da cidade que ele defendeu, mesmo com a própria vida, e a melancolia pela falta de esperança de que tudo volte a ser o que era.
- E a escola, Alice?
Ela acordou subitamente de seus pensamentos, apressando-se a responder.
- Ainda está em ruínas, os militares não permitiram que fosse reconstruída.
-Malditos...primeiro destroem nossa casa, agora querem destruir nossos direitos.
Sem entender porque, Alice contou o ocorrido daquela manhã, e as palavras de Diego.
- Sem dúvida eles vão acabar fazendo algo grande, mas isso lhes custará a vida.
Os dois estavam sentados em um banco de frente para o lago, tio Onésio estava deitado na grama ali próximo e Diego, sentado à margem, atirava pedras na água.
- Diego quase não tem falado ultimamente...
- Não julgue, ele tem seus motivos.
Ele parou de súbito, como se fosse terminar a frase.
- Sabe o que o Doutor me disse hoje?
- O que?
- Adivinha...
Alice estava a perder a paciência, ele sempre fazia isso nessas horas, e ela sempre se excedia em sua ansiedade.
- Vamos, diga logo, papai!
- Daqui duas semanas eu recebo alta... E sua mãe também!
Alice experimentou algo que a muito não sentia – a esperança voltou a visitar-lhe, avivando cada célula do seu corpo, mais uma vez abandonou-se no braço forte de sue pai e esqueceu de tudo ao redor.
- Diego! Papai e mamãe recebem alta em duas semanas!!
-Que bom!
Para a surpresa de Alice, surgiu nos lábios do irmão o principio de um sorriso. Será que ele está voltando? Ao perceber o olhar dela, Diego voltou a fechar o rosto e assim permaneceu.
- Já é hora de voltarmos.
Após um sorriso satisfeito, tio Onésio voltou à posição séria, ele também não estava normal. No caminho de volta lembrou-se de perguntar ao pai, enquanto Onésio e Diego colocavam a cadeira no porta-malas.
- Porque tio Onésio está tão triste hoje?
- Um grande amigo de seu tio, que estava desaparecido, foi encontrado ontem. Onésio ainda tinha esperanças de que o achassem vivo.
Ao ver a expressão de seu pai, Alice participou do sofrimento de Onésio. Porque as pessoas boas têm que sofrer?. Lembrou-se das palavras de seu professor, poucos dias antes dos bombardeios: Tudo atualmente é feito em prol do dinheiro, inclusive essa guerra.
Foi por isso que Tom morreu – pensou – E também o amigo de tio Onésio, assim papai perdeu o braço e está no hospital, para que alguns homens saciassem sua ganância. A maldita guerra...o maldito dinheiro.
Uma lagrima de raiva escorreu pelo seu rosto, ela secou-a com a mão e esforçou-se por sorrir. Queria também fortalecer seu pai, e transmitir-lhe a confiança que ele a pouco lhe dera, mas o máximo que conseguia era sorrir um sorriso falso, escondendo a dor.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Algo que achei em meio aos papeis antigos...

Antes de abrir os olhos, Alice deteve-se a ouvir os sons daquela manhã de domingo. Lá fora, na rua, o dia já estava agitado; vendedores competiam gritando em favor de seus produtos e brigavam pela escassa freguesia. Desde a guerra, a maioria das pessoas já chegara à miséria, em breve seria a vez dos comerciantes. Alice sentiu-se feliz por não chegar a isso, graças à seu tio, que os acolhera quando perderam a casa. Tio Onésio era um bom homem, o único homem rico e bom que ela conhecia. Apesar de seu rosto duro e áspero, nunca lhe encarava sem que surgisse em seus lábios um sorriso. Não fosse por ele, papai morreria - dissera sua mãe – o tratamento é caro e não temos como pagar.
Alice pensou em seu pai, estendido debaixo dos lençóis brancos do hospital. Seu braço esquerdo, antes tão ágil e forte, que por muitas vezes a suspendeu no ar, agora não passava de um toco que saía-lhe do ombro. Seu estômago dilacerado já não podia digerir o alimento, que era-lhe ejetado na veia. Apesar de tudo, papai sorria, demonstrava-se feliz todas as vezes que ela ia visita-lo. As vezes forçava o rosto para disfarçar a dor, assim como Ela mesma esforçava-se por disfarçar a tristeza de vê-lo em tal estado. Conversavam como se nada tivesse acontecido, como se o tempo pudesse voltar e então estivessem sentados na velha sala, rindo e brincando, como se ainda houvesse esperança.
Lembrou-se do irmão mais velho, o grande Tom, sempre competindo com todos e querendo ser o melhor em tudo. Apesar das richas, Alice gostava do irmão, no fundo podiam entender-lhe; e agora não deixava de visitar-lhe e chorar em sua sepultura. O velório foi feito com o caixão fechado... não era algo adequado para os olhos verem. Mais uma vez, Alice odiou a guerra.
Tom estava morto, seu pai, no hospital, iria ficar sem um dos braços, sua mãe que até então havia lutado para compensar-lhes as perdas, agora estava com a febre. Ela havia sido internada no mesmo hospital que papai, mas não podia vê-lo, por causa da sua doença, se ele pegar a febre, não terá mais salvação apesar de sua insistência, Alice também não podia ver a mãe, mas recebia suas cartas toda semana. O cheiro dos produtos usados na desinfecção não conseguia sobrepor-se ao doce perfume de sua mãe, que sempre lhe dizia que tudo ficaria bem e iam todos acampar no fim do ano.
Ainda de olhos fechados, começou a imaginar como seria a morte; após refletir um pouco, concluiu que não sabia como era morrer, mas um dia teria que passar por isso. O velório foi feito com o caixão fechado... não era algo adequado para os olhos verem. Imaginou a guerra... o rosto rude e desafiador de Tom... a granada explodindo em seu peito... morte
Em um sobressalto, Alice pôs-se a conferir todos os seus membros – estavam ali, estava respirando, seu coração batia. Então sentiu-se invadida por uma alegria intensa, era grata por estar viva, por poder abrir os olhos.
Agora, de olhos abertos, enxergava as manchas do teto, pôs se a contá-las atenciosamente para se certificar. Após três contagens, deu-se por satisfeita – estavam todas ali. Agora de manhã, eram apenas manchas, mas ela sabia que ali estavam animais misteriosos que lhe entretinham e contavam historias em suas noites de insônia. Uma vez, ouvira sua mãe dizer que, devido à situação, ela amadureceria mais rápido. Agora, com quatorze anos, já entendia muitas coisas, mas não deixava de acreditar nas historias que ouvira e principalmente naquelas criadas por ela. Não se importava se fossem só manchas fantasiadas por sua mente confusa, o fato é que elas lhe faziam sentir-se bem e não gostaria que nenhuma delas fugisse.
Alguém bateu à porta do quarto, logo a voz do irmão soou estridente pelo corredor:
_ Vamos Alice, o tio Onésio está esperando!
Ela olho para o pequeno relógio em seu criado mudo – dez horas. Nada de errado em acordar tarde no domingo... mas hoje é um dia importante.
Apressou-se em colocar as roupas separadas na noite anterior - normalmente não escolheria, mas esse dia era diferente. Seu pai, pela primeira vez nos últimos seis meses, poderia sair do hospital. Mesmo sendo por somente algumas horas, já era um grande consolo.
_ Já está pronta, Alice? Estamos saindo.
Agora a voz de tio Onésio soava pelo corredor atrás da porta, agora sabia que era sério.
_ Estou quase, só mais um minuto!
A voz saiu-lhe fraca e sonolenta, como se alguém falasse ainda de olhos fechados. Tomara que ele não pense que estou dormindo, é bem capaz de me deixar aqui... Correu para o espelho e pôs-se a observar seu aspecto atual – sonolência, mas não as olheiras de que esteve sem dormir, a sonolência torpe e amassada de que dormi demais. Seus cabelos, cortados logo abaixo da orelha, espalhavam-se alegremente em todas as direções, o que conferia-lhes o aspecto de uma pequena juba, pronta para impedir o acesso de qualquer escova. Não tenho tempo pra isso, pensou cobrindo os rebeldes com uma boina verde-soldado.
Olhou mais uma vez para a garota do espelho e mostrou-lhe a língua, debochando. Não achava-se bonita, nem fazia qualquer esforço para se-lo, simplesmente aceitava-se.
Começou a ouvir o ronco do motor lá embaixo, na garagem – o tempo acabara. Correu para porta e deteve-se um instante com a mão na maçaneta, olhou mais uma vez para as manchas do teto.
_ Não vão fugir enquanto estou fora!
Abriu a porta e desceu correndo até a garagem.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Nada

O imenso nada em que pensamos...
O nada onde estamos...
O nada que fazemos...
O nada que somos.