sábado, 27 de dezembro de 2008

Algo que achei em meio aos papeis antigos...

Antes de abrir os olhos, Alice deteve-se a ouvir os sons daquela manhã de domingo. Lá fora, na rua, o dia já estava agitado; vendedores competiam gritando em favor de seus produtos e brigavam pela escassa freguesia. Desde a guerra, a maioria das pessoas já chegara à miséria, em breve seria a vez dos comerciantes. Alice sentiu-se feliz por não chegar a isso, graças à seu tio, que os acolhera quando perderam a casa. Tio Onésio era um bom homem, o único homem rico e bom que ela conhecia. Apesar de seu rosto duro e áspero, nunca lhe encarava sem que surgisse em seus lábios um sorriso. Não fosse por ele, papai morreria - dissera sua mãe – o tratamento é caro e não temos como pagar.
Alice pensou em seu pai, estendido debaixo dos lençóis brancos do hospital. Seu braço esquerdo, antes tão ágil e forte, que por muitas vezes a suspendeu no ar, agora não passava de um toco que saía-lhe do ombro. Seu estômago dilacerado já não podia digerir o alimento, que era-lhe ejetado na veia. Apesar de tudo, papai sorria, demonstrava-se feliz todas as vezes que ela ia visita-lo. As vezes forçava o rosto para disfarçar a dor, assim como Ela mesma esforçava-se por disfarçar a tristeza de vê-lo em tal estado. Conversavam como se nada tivesse acontecido, como se o tempo pudesse voltar e então estivessem sentados na velha sala, rindo e brincando, como se ainda houvesse esperança.
Lembrou-se do irmão mais velho, o grande Tom, sempre competindo com todos e querendo ser o melhor em tudo. Apesar das richas, Alice gostava do irmão, no fundo podiam entender-lhe; e agora não deixava de visitar-lhe e chorar em sua sepultura. O velório foi feito com o caixão fechado... não era algo adequado para os olhos verem. Mais uma vez, Alice odiou a guerra.
Tom estava morto, seu pai, no hospital, iria ficar sem um dos braços, sua mãe que até então havia lutado para compensar-lhes as perdas, agora estava com a febre. Ela havia sido internada no mesmo hospital que papai, mas não podia vê-lo, por causa da sua doença, se ele pegar a febre, não terá mais salvação apesar de sua insistência, Alice também não podia ver a mãe, mas recebia suas cartas toda semana. O cheiro dos produtos usados na desinfecção não conseguia sobrepor-se ao doce perfume de sua mãe, que sempre lhe dizia que tudo ficaria bem e iam todos acampar no fim do ano.
Ainda de olhos fechados, começou a imaginar como seria a morte; após refletir um pouco, concluiu que não sabia como era morrer, mas um dia teria que passar por isso. O velório foi feito com o caixão fechado... não era algo adequado para os olhos verem. Imaginou a guerra... o rosto rude e desafiador de Tom... a granada explodindo em seu peito... morte
Em um sobressalto, Alice pôs-se a conferir todos os seus membros – estavam ali, estava respirando, seu coração batia. Então sentiu-se invadida por uma alegria intensa, era grata por estar viva, por poder abrir os olhos.
Agora, de olhos abertos, enxergava as manchas do teto, pôs se a contá-las atenciosamente para se certificar. Após três contagens, deu-se por satisfeita – estavam todas ali. Agora de manhã, eram apenas manchas, mas ela sabia que ali estavam animais misteriosos que lhe entretinham e contavam historias em suas noites de insônia. Uma vez, ouvira sua mãe dizer que, devido à situação, ela amadureceria mais rápido. Agora, com quatorze anos, já entendia muitas coisas, mas não deixava de acreditar nas historias que ouvira e principalmente naquelas criadas por ela. Não se importava se fossem só manchas fantasiadas por sua mente confusa, o fato é que elas lhe faziam sentir-se bem e não gostaria que nenhuma delas fugisse.
Alguém bateu à porta do quarto, logo a voz do irmão soou estridente pelo corredor:
_ Vamos Alice, o tio Onésio está esperando!
Ela olho para o pequeno relógio em seu criado mudo – dez horas. Nada de errado em acordar tarde no domingo... mas hoje é um dia importante.
Apressou-se em colocar as roupas separadas na noite anterior - normalmente não escolheria, mas esse dia era diferente. Seu pai, pela primeira vez nos últimos seis meses, poderia sair do hospital. Mesmo sendo por somente algumas horas, já era um grande consolo.
_ Já está pronta, Alice? Estamos saindo.
Agora a voz de tio Onésio soava pelo corredor atrás da porta, agora sabia que era sério.
_ Estou quase, só mais um minuto!
A voz saiu-lhe fraca e sonolenta, como se alguém falasse ainda de olhos fechados. Tomara que ele não pense que estou dormindo, é bem capaz de me deixar aqui... Correu para o espelho e pôs-se a observar seu aspecto atual – sonolência, mas não as olheiras de que esteve sem dormir, a sonolência torpe e amassada de que dormi demais. Seus cabelos, cortados logo abaixo da orelha, espalhavam-se alegremente em todas as direções, o que conferia-lhes o aspecto de uma pequena juba, pronta para impedir o acesso de qualquer escova. Não tenho tempo pra isso, pensou cobrindo os rebeldes com uma boina verde-soldado.
Olhou mais uma vez para a garota do espelho e mostrou-lhe a língua, debochando. Não achava-se bonita, nem fazia qualquer esforço para se-lo, simplesmente aceitava-se.
Começou a ouvir o ronco do motor lá embaixo, na garagem – o tempo acabara. Correu para porta e deteve-se um instante com a mão na maçaneta, olhou mais uma vez para as manchas do teto.
_ Não vão fugir enquanto estou fora!
Abriu a porta e desceu correndo até a garagem.

Um comentário:

Ana. disse...

Eu fui triturando cada palavra e cada ação de Alice e identifiquei-me com ela.Muitas vezes consigo reparar em certas manchas no teto,que dividem comigo meus sonhos e minhas esperanças....
Eu simplesmente AMEI seu espaço e seus poemas!
Acho que quem tem de crescer para escrever igual a você aqui,sou eu!
rsrsrs

beijo grande!